terça-feira, 31 de março de 2009

A verdadeira maionese- texto do Artur

Leiam no original com fotos e comentários:
http://pespracima.blogspot.com/

Impressões sobre o histórico Brevet Audax 100 km,
realizado em Santa Cruz do Sul no último dia 8 -
inaugurando no Brasil a modalidade
nos moldes da Union des Audax Français.
Tudo começou em meados do ano passado. Tomei conhecimento do assunto quando o Luiz "Gigio" Faccin o lançou no grupo de discussão Audax BR .
Há um outro jeito de fazer "Audax", que não é este que vem se popularizando no Brasil há alguns anos, muito especialmente aqui no RS, e que todos estamos acostumados a chamar de "Audax" (uma alusão à audácia necessária para enfrentar o desafio de percorrer longas distâncias de bicicleta).
De uma hora para outra, surgiu a informação surpreendente que, em França, terra onde nasceu e é muito cultivada esta modalidade de ciclismo de resistência em estrada, não-competitivo - na qual todos os que conseguem percorrer determinada distância (p.ex. 200 km) dentro de um tempo limite (p.ex. 13 hs) recebem o mesmo prêmio, que é o brevet que qualifica à participação em um desafio ainda maior (p.ex. 300 km), e assim sucessivamente - a terminologia é outra.
Instaurou-se imediatamente a polêmica. Como assim? Como não é Audax, se quem chancela o calendário é uma organização chamada Audax Club Parisien?
Faccin tentou esclarecer:
Randonnée é uma modalidade de cicloturismo de longa distância que aqui no Brasil ficou mais conhecida com o nome de Audax. A provável origem desta troca de nome é o fato da modalidade ser dirigida pelo Audax Club Parisien. Audax e Randonnée têm a mesma origem, mas são reguladas por organizações diferentes: Randonnée pelo Audax Club Parisien; Audax pela Union des Audax Français.

Característica do Randonnée: Alure libre = Andar livre, cada ciclista anda conforme o ritmo que deseja e não existe obrigação de andar em grupo e nem em uma média definida.

O Audax define-se como uma prova de regularidade e de de resistência, em andamento imposto conduzido e controlado por capitães de estrada que controlam a velocidade do grupo. Esta, entre dois controles é de 20, 22,5 ou 25 km/h de acordo com o perfil do percurso (...)
Muitos "audaxiosos" se eriçaram.
Faccin bateu pé; as provas de "Audax" conforme conhecíamos até então, nas quais cada participante pedala à velocidade que quiser/puder, deveriam ser chamadas "Randonées", termo pelo qual são conhecidas internacionalmente.
O termo Audax em sentido estrito seria aplicado apenas a este outro estilo ou subdivisão da modalidade, ainda inédito entre nós, no qual os participantes pedalam em grupos (ou pelotões, como se diz no jargão ciclístico), a uma velocidade média pré-estabelecida, e controlada constantemente por um ciclista identificado por um colete especial e cuja função vem adornada de um garboso título: "Capitão de Rota". O ciclismo de estrada é bonito, cheio de fidalguices.

Não contente com isso, decidiu organizar, ele mesmo, a primeira prova de Audax - "a verdadeira maionese" - em terras brasileiras. Traduziu o regulamento, pôs-se em contato com o órgão regulador (Union des Audax Français), marcou data, planejou trajeto, enfim: pensou em todos os infindáveis detalhes que só quem está tentando organizar alguma coisa sabe quais são. Numa alusão ao "Colorado Last Chance", um brevet de 1200 km que acontece nos EUA, a prova foi batizada de Audax 100 km "Only Chance". Por quê? Por que só se pode fazer uma coisa pela primeira vez uma única vez! E este seria o primeiro Audax no Brasil.
Interessei-me pelo assunto por uma razão que poderá parecer bizarra a alguns. Pensando bem, parece um pouco bizarra a mim tbém. Em todo caso, lá vai:
Essa coisa de encarar o desafio em grupo - começar e terminar juntos - me fez lembrar fortemente um aspecto da prática Zen-budista: em Sesshin (retiro Zen) fazemos exatamente isso: meditamos, trabalhamos, cozinhamos, comemos, descansamos juntos - como um organismo que se auto-regula (ver postagem de 5 de março, logo abaixo). Nas palavras do Faccin:
Partir juntos, chegar juntos: o Audax, não é somente praticar um exercício físico de resistência, porque a fórmula exclui qualquer noção de competição. É também, e sobretudo, praticá-lo junto, de maneira solidária, os mais fortes ajudando os outros a atingir o objetivo.
Neste momento me ocorre que a orquestra sinfônica - meu habitat natural, por assim dizer - poderia servir tbém como metáfora. É um esforço coletivo que se compõe de muitos esforços individuais coordenados. Não existe "harmonia" pré-estabelecida num grupo; as coisas dão certo quando as pessoas se esforçam para que dêem certo. É um exercício. É assim na orquestra, é assim (de uma maneira muito especial) em um retiro Zen. Como seria em um Audax "a verdadeira maionese"? Fiquei curioso e decidi participar.
O blog Audax Brésil, dedicado a esta "nova" modalidade, traz relatos do experiente audaxioso Omar Torriani, e do próprio Faccin, que descrevem muito bem o clima e os principais fatos da prova. Para não repetir o que eles já contaram, e não esticar ainda mais um texto que já está bem comprido, vou fazer apenas alguns comentários/observações.
Fiquei muito impressionado com a disciplina, no geral. Exemplo: a única parada prevista era de 15 minutos. Parece bastante, mas na verdade, a gente tem que manter o foco e ser bem objetivo se quiser ir ao banheiro, comprar alguma coisa para comer/beber, reaplicar protetor solar, alongar um pouquinho. Além de ficar na fila do carimbo no passaporte. O Faccin ainda teve que trocar uma câmara furada - sim, ele foi o único premiado. Quinze minutos e nem um minuto a mais, soa o apito e o pelotão começa a se movimentar. É bacana. Eu ainda estava passando protetor e minha xícara de café estava cheia, como flagraram os autores do vídeo...
Outro exemplo da disciplina e maturidade dos participantes foi o comportamento nas descidas. Estava programada uma velocidade mais alta do que a média, mas apenas o suficiente para compensar as subidas. Nada de "soltar a bicicleta". Ninguém se atreveu a ultrapassar o capitão de rota. Fiquei com dor nos dedos de tanto frear.
Disciplina - quando emana da maturidade - é bonito. Faz bem. Creio que muitos ciclistas que praticam Audax ou Randonée o fazem como uma espécie de treinamento para a vida. Tem essa coisa do desafio, das longas distâncias, de não se acomodar, agüentar as dificuldades. O Audax "a verdadeira maionese" agrega esse outro elemento: a disciplina em grupo. A bicicleta é freqüente e corretamente associada à liberdade, por diversas razões. Ao pedalar um brevet em pelotão, abrimos mão da liberdade de seguir nossos impulsos; não podemos escolher a velocidade. É um tipo especial de exercício, a meu ver bem saudável, e não só do ponto de vista físico!
Outra coisa que não posso deixar de mencionar é o fato de que havia uma reclinada no Primeiro Audax do Brasil...
Agora que já passou posso confessar que cheguei a me preocupar um pouco com isso. Nós reclineiros sofremos historicamente com restrições, preconceitos, desprezo e proibições. O Audax faz parte da tradição do ciclismo de estrada europeu; que é um esporte tão belo quando conservador. Como seria recebido pelos companheiros de brevet?

No início, pretendia ficar na rabeira do pelotão, para evitar problemas. Porém, já nos primeiros quilômetros, havia uma longa subida. Alguns foram ficando para trás e o pelotão começou a apresentar hiatos cada vez maiores. Aí não me agüentei, ultrapassei o pessoal que estava ficando pra trás, preenchendo o espaço vazio até encontrar a porção mais coesa do pelotão. E aí fiquei até o final da prova.

Talvez alguns tenham se sentido atrapalhados ou assustados ao verem próximos de si uma bicicleta de configuração diferente do que estão acostumados; a estes peço desculpas. Por outro lado, o estilo típico de pedalar reclinado tende a ser mais previsível e estável, de maneira que para quem vem atrás deve ser bem tranqüilo.
Alguns comentaram bem-humoradamente que não dava para "pegar o vácuo" atrás da reclinada. Bem, isso seria um problema em velocidade de competição, mas a 22.5 km/h o fator aerodinâmico não é significativo. Tanto que a vantagem aerodinâmica da reclinada tampouco chega a aparecer. Então realmente não é isso que importa, nesta modalidade!
Falando em brincadeiras, antes da largada o Faccin tentou me assustar dizendo que íamos subir a 25 m/h. Não sei se ele falou isso só para mim, em função do conhecido preconceito a respeito de reclinadas e subidas, ou se era uma pegadinha que ele faz com todo mundo. Próximo ao final da prova, depois de ter feito TODAS as subidas com o pelotão da frente, devolvi a provocação: "e aí Faccin, eu subi direitinho com vocês, agora quem consegue descer comigo?" Estava aludindo à vantagem aerodinâmica da reclinada - que não é fantasia nem preconceito, é um fato. O clima amigável permitia esse tipo de brincadeira sem nenhum problema.
Será que a modalidade vai "pegar"? Só o tempo dirá. O pessoal de Santa Maria gostou tanto que vão organizar mais um brevet de 100 km lá. O que é ótimo, porque senão só os que fizeram o "Only Chance" teriam o direito de participar do brevet de 200 km que já está marcado para setembro, novamente em Santa Cruz do Sul.

Um comentário:

mulherescorremcomlobos disse...

Impecavél de fato, sem tirar o mérito de todo evento, o texto realmente sabe se expressar em todos os sentidos, inclusive no que tange a comparação feita à filosofia zen budista, principalmente!